Alguém se incomodou.




Ela fazia a mesma coisa todos os dias, mas naquele dia alguém se incomodou.

Todas as tardes havia aquela fila, com pessoas de todos os tipos, mas com a mesma expressão cansada, bem em frente à estação do metrô.

Todas as tardes ela passava por aquela fila olhando atentamente cada um daqueles rostos na esperança de encontrá-lo novamente, mas ela sabia que ele não estaria lá, não mais, agora ele pertencia a outro plano, a outra realidade. Mesmo sabendo disso, ela olhava.
Ela o tinha encontrado ali uma vez, uma única vez. Há quanto tempo? Nem sabia mais. Eles se abraçaram felizes com o reencontro tão inesperado, e tiveram apenas uns poucos minutos para conversar antes da chegada do ônibus. Foi um encontro muito rápido, mas recheado de planos e promessas de novos encontros, o que deixou ambos mais animados para prosseguirem em suas viagens, ela para casa, após um dia particularmente cansativo de trabalho, e ele indo encontrar os amigos para uma noite de festa e muita bebida.
Desde então, ela passava olhando para cada um na fila. Nos últimos meses, era tudo mais difícil. Ela procurava o amigo, mas logo se dava conta de que ele não poderia mais estar ali. Todas as tardes era a mesma coisa, a esperança de vê-lo, seguida pela deprimente lembrança de sua morte. Mas naquele dia foi diferente. Alguém se incomodou.
- Hey garota, o que você tá olhando? Não sabe que é feio ficar encarando os outros, não?
Ela não conseguiu responder, apenas começou a chorar e seguiu seu caminho correndo.


Naquele dia, nenhum dos artifícios que ela usava para se distrair nos 90 minutos de viagem do trabalho pra casa funcionou. Nem as músicas, nem o livro, nem os joguinhos no celular, nada foi capaz de apagar a vergonha que ela sentiu ao ouvir a mulher gritando, e nada foi capaz de apagar as imagens dele: o sorriso feliz de um encontro inesperado, a fraqueza e o cansaço depois de dias no hospital, e a última e mais terrível de todas as imagens, seu rosto sem vida naquele caixão.
Antes de pegar o ônibus para os últimos 30 minutos até sua casa, ela decidiu passar no supermercado. Gastou mais de R$ 150,00 numa compra um tanto incomum para uma garota sozinha em plena terça feira: bebidas. Equilibrando sua bolsa e as sacolas do mercado com vodca, tequila e absinto, ela foi pra casa ainda chorando, e se ocupou apenas das garrafas quando se trancou em seu quarto. Bebeu até cair!


Acordou atrasada e correu para o trabalho, mal se deu conta de sua saída e de seu trajeto. Estava se sentindo cansada e com fortes dores na cabeça e no estômago, além de uma sede que parecia não passar nunca.
No trabalho ninguém lhe deu muita atenção, mas ela não se importou, estava oscilando entre a depressão e a irritação extrema e achou até confortável que ninguém lhe dirigisse a palavra. O dia parecia se arrastar cada toque do telefone era um tormento, parecia que seu cérebro estava se espremendo e ela não conseguia se concentrar em nada. Seus colegas atendiam suas ligações e diziam que ela não estava, nunca havia pensado que eles pudessem ser tão compreensivos.
Com a dor lancinante no estômago, ela decidiu não almoçar, mesmo assim na parte da tarde ela se sentia um pouco melhor, talvez pelo cochilo tirado na sala de arquivos. O período da tarde transcorreu da mesma forma que o da manhã, ao ver chegar o fim do expediente ela se despediu com um simples “tchau” para o qual nem esperou resposta, e saiu em direção à estação.
No caminho ela se lembrou dos acontecimentos do dia anterior e se viu torcendo para não encontrar aquela mulher novamente. Ao chegar perto da fila de caras cansadas, ela tentou não olhar as pessoas, mas a curiosidade e a força do hábito venceram, e ela olhou...


Um grande choque percorreu seu corpo. Ele estava lá. Não, não era possível, não podia ser verdade. Ela olhou com mais atenção, deixando de se importar com a possível reação das pessoas ao redor e então teve certeza, ele estava ali, sorrindo pra ela como naquele dia. Mesmo se sentindo maluca e achando que aquela visão se desvaneceria num piscar de olhos, ela correu pra ele e ele a abraçou, tão apertado, tão terno e carinhoso como sempre. Assim como no dia anterior ela se desfez em lágrimas, mas desta vez suas lágrimas eram da alegria intensa que ela não conseguia segurar.
Ela se deixou ficar ali, abraçada com seu amigo, sem se preocupar com mais nada no mundo até que começou a se questionar. Ela se afastou sem conseguir verbalizar nenhuma das perguntas que rodava em sua mente, ele a olhava e sorria a cada vez que ela abria a boca pra falar e fechava em seguida sem saber por onde começar. Finalmente ela conseguiu isolar seu principal questionamento – você morreu, como pode estar aqui? – e estava prestes a perguntar quando ele levou o indicador aos lábios num sinal de silêncio e a abraçou novamente. Por mais que tentasse, ela não conseguia se acalmar, seu cérebro não parava de trabalhar furiosamente procurando explicações. Será que ele não tinha morrido, afinal? Onde ele estivera então nos últimos dois meses? Ou será que...?

A este último pensamento incompleto, ela sentiu o mundo girar ao seu redor, ela se agarrou ao amigo ainda mais firmemente e quando a sensação passou, ela viu com certo horror que já não estavam mais na estação e sim em sua casa. Com espanto crescente, viu que a porta do seu quarto tinha sido arrombada e sua irmã estava chorando enquanto um desconhecido fardado dizia: “– Aparentemente ela teve uma parada cardiorrespiratória por toxicidade aguda, mas isso só pode ser confirmado no hospital”.
Ao ouvir isso, as imagens do seu dia foram se reconstruindo lentamente. Criando coragem, ela entrou no quarto. Viu seu corpo sendo colocado numa maca... A garrafa de vodca ainda intocada ao lado da cama... Um resto de tequila numa garrafa tombada... Cacos espalhados do que tinha sido uma garrafa de absinto... Instintivamente ela se afastou para dar passagem aos paramédicos que levavam a maca, depois ainda atordoada sorriu para o amigo ao se dar conta de como aquilo era desnecessário.
Pela primeira vez seu amigo falou. “– Agora você não precisa mais ficar me procurando, vai até enjoar de mim... Você está pronta?”.


Se alguém ali tivesse o dom, teria visto uma garota assustada – apesar de feliz – abraçando um belo rapaz e desaparecendo em meio a luzes coloridas, mas tudo o que as pessoas puderam ver foram as luzes da casa piscando estranhamente...

(TEXTO DE 2014)

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